Maldita terra estrangeira

Por Fernando Portela

Não acredito em terapia. Já fiz umas quatro vezes. E olha como estou, cada vez mais pirado. Pelo menos é isso o que os terapeutas dizem. Comecei com o tal do psicodrama, nos anos setenta, eu ainda era muito menino. Vinte e poucos anos, queria comer o mundo, e o comia, em parte.

O terapeuta era um personagem da moda (sabe, aquela mistura de faturamento conservador e estilão comunista, porém simpático à proposta hippy, só para papar as clientes.) O cara, no fundo, era um nojo. Um fascistoide.

Achei legal o psicodrama. Todo mundo falava e eu, moita. Me divertindo. Tinha umas mulheres louquíssimas. Bonitas, sabe, casadas, mas invariavelmente ninfomaníacas. A vontade de homem saltava junto com os seus peitinhos fofos, sem sutiã. O psiquiatra comia a mais alta, Morgana, eu sacava tudo, não nasci ontem. E havia também as loucas inúteis, quer dizer, loucas só de cabeça. Era o caso de Maria das Graças, a portuguesa. Feia de provocar alergias. Magra como uma vara. E o pior: olhava para mim com ódio, demonstrando, na verdade, grande interesse.

Naquele grupo insensato só havia dois homens. Também, sessão às três da tarde era coisa pra milionário ou vagabundo. Eu não era milionário, mas filho de. E o outro, vagabundo mesmo, funcionário do Poder Judiciário. O puto enchia a boca pra falar “Poder Judiciário.” Teve um dia em que o mandei enfiar o Poder Judiciário no cu. Ele engasgou, mas o psiquiatra me defendeu; ali no psicodrama cada um falava o que queria. O malandro do terapeuta começou, por sua vez, a comentar sobre a minha agressividade. Disse um monte de merda.

 Mas a tal portuguesa, que eu chamava de Maria Desgraça, imitando o sotaque luso, foi chamada para representar sua própria família no palco. Vocês conhecem psicodrama, não? O palco é um tablado, e a gente, os pacientes, oito pessoas sentadas no chão; o malandrão ficava no centro, numa cadeira mais alta, junto com a ego-auxiliar, uma espécie de ajudante-de-ordens dele. Eu simpatizava com a ego-auxiliar. Um rosto meio gasto, mas umas pernocas lindas, que a minissaia realçava. Graziela. Naquela época, as mulheres haviam cismado de jogar fora o sutiã, mas a Graziela, esperta, comprou uns decotados, rendados, e usava blusas mais ou menos transparentes. Quanto mais eu olhava para os peitos dela, sugeridos, mas ela gostava de mim.

Então Maria Desgraça foi chamada. O mau humor da mulher ganharia uma guerra. Era tão descompensada que não dava pra saber que idade tinha. Fisicamente, uns trinta; na expressão, cinquenta e poucos. A filha da puta subiu no tablado, olhou para mim com aquele ódio mortal e chamou-me ao “palco.”

“Este é o meu pai!”, ela disse, como se me insultasse.

Vocês podem imaginar a minha cara, tirando sarro da situação. Aí ela se virou para Morgana, a gostosa (acho que a portuguesa sentia ciúmes dela com o terapeuta, ou então uma puta inveja, também pudera), e falou, com ódio ainda maior: “Esta é a minha mãe!”

Morgana subiu, trocou um olhar divertido comigo (eu deveria ter investido mais nela), enquanto o psiquiatra olhava meio sonado e a ego-auxiliar escrevia sem parar. Sempre desconfiei que o vigarista do terapeuta viajava durante certos momentos das sessões, talvez pensando de que forma gastaria o dinheiro pesado que a gente deixava lá. Mas a portuguesa virou-se para o cara do Poder Judiciário e acho que ele tremeu na hora, diante de tanto ódio estancado na expressão da louca.

“Este é o meu sexo”, ela vociferou, com o dedo em riste apontando para o cara, como quem manda um condenado para o inferno.

Agora, vocês precisam entender a situação: todo mundo naquele tempo tinha jeito de Che Guevara; o cara, então, ostentava uma barbicha rala, era meio bochechudinho, o que lhe dava um certo ar de perplexidade e expectativa ao mesmo tempo. Aí eu não suportei: quando ele subiu no tablado, perguntei de surpresa:

“Posso lhe chamar de boceta?”

Foi uma revolução. A ego-auxiliar soltou uma gargalhada tão escandalosa que o psiquiatra não disfarçou um olhar de reprovação, mas ele próprio se cagou de rir, reprimindo-se com a mão na boca. As meninas se estouraram. O vagabundo do Poder Judiciário continuou perplexo, cada vez mais parecido com uma boceta deprê. E Maria Desgraça chorou com uma voz rouca, de soluços hostis. A palhaçada durou tanto tempo que o terapeuta resolveu encerrar a sessão por falta de condições mínimas, e aí eu vi, também, que não dava pra mim. Pedi as contas, ou melhor, deixei de pagar aquela merda que não estava me adiantando de nada, na verdade só garantia a minha saída mais cedo da empresa do meu pai, que, naquele tempo, faturava horrores. Meu pai era amigo de uns generais; ele próprio não ficou nem mais nem menos rico com aqueles negócios de alta tecnologia, mas os generais… meu Deus, como roubaram o Brasil naquela época!

Logo depois da tal experiência frustrada do psicodrama, eu me casei. Vou-lhes dizer: cheguei a flertar em plena igreja, enquanto esperava a noiva, com a irmã de uma das madrinhas, que eu já conhecia de umas férias na praia, e a quem tinha encoxado legal no réveillon de mil novecentos e sessenta e sete.

Claro, foi um fracasso, o meu casamento. Para ela também, a Belica, como chamavam a minha esposa, uma bonequinha da elite, tão anta que não conseguiu passar nos vestibulares dos cursos mais bundas das faculdades particulares, as quais, ainda por cima, pertenciam a amigos da família dela. Me lembro do Doutor Camacho, coitado, um daqueles empresários de educação, picareta humilde, tentando explicar ao meu sogro que não havia conseguido uma “brecha técnica” para fazer Belica passar num curso, nem me lembro de que, acho que de Relações Públicas.

“Que porra de brecha técnica é essa, Camacho?”, exasperava-se o meu sogro, grande bandido, pecuarista, comprador de ministros, um crápula.

“É que a prova da menina não foi muito feliz, sabe, tem uns professores que exigem, assim, um mínimo…”

“Tá chamando a Belica de burra, Camacho?”

“Que é isso, doutor? Não se confunda com o que eu disse.”

Vou contar pra vocês: o meu casamento só durou dois anos, na verdade, porque eu tinha medo de que o sogro me mandasse matar. Então, vejam que situação angustiante: eu torcia para que Belica me pusesse um imenso chifre, mas grande mesmo, e sobretudo público. Precisava de um pretexto. Acabou acontecendo com um contrabandista italiano, e eu cheguei junto ao pilantra, com cara de choro fingida, pra dizer que não seria possível continuar com a “farsa do meu casamento.”

“Que é isso, menino?”, ele ponderou. “Somos tutti cornuti, sabe? Tutti. A gente faz o que quer e não tem mulher que nos aguente.”

Eu o convenci de que eu era exceção, mas por conta dos problemas conjugais já estava metido numa outra terapia. Esta, fantástica! Na verdade, trançava minhas pernas com as da psicóloga, a Rosa Eugênia, papando-a em pleno divã, enquanto ela se lamentava por estar-se destruindo profissionalmente.

“Sai, sai, eu não posso fazer isso, é antiético…”, ela choramingava, bicha falsa.

Foi durante essa fase doida que estourei o carro, bêbado, debaixo de um viaduto e mandei um mendigo pro céu. Nunca tive dúvidas de que os mendigos vão para o céu. Puta merda: foi um parto aquela história. Contrata advogado de um lado, compra policial do outro, meu pai chegou a molhar a mão de gente mais graúda, que ele não me revelou. Mas escapei. Só que havia perdido muitas sessões de terapia e, quando voltei, Rosa Eugênia me recebeu na recepção, com a secretária por perto.

“Vamos conversar um pouco, Rosa, lá dentro.”

“Não fico com você sozinha de jeito nenhum. Estou recuperando a credibilidade que perdi para mim mesma. Você tem muitas opções de tratamento.”

Não tinha. Ou não achei. Não sei bem o que acontecia comigo. Queria champagne, por exemplo, e bebia até cair. E sempre puto, sempre infeliz. Queria mulher. Pô: vocês não imaginam quem eu já comi. E nada de felicidade, bem-estar. Muita gargalhada, muito balanço, e depois um puta vazio, uma ansiedade, vontade de morrer, sei lá o quê. Só não transei droga, com medo de me desgraçar de vez. Mas dei umas experimentadas. Maconha… eu me sentia índio quando fumava maconha. Cocaína não faz minha cabeça: muita taquicardia pra pouco retorno. Mas ópio, tive de parar na primeira cachimbada. Ou ia me estoporar todo.

A minha última terapia foi a Benê, minha atual namorada, que conseguiu me arrumar. Quer dizer, mais ou menos. Já não carrego a putaria de antes, acho até que ando responsável, tentando administrar o que restou do dinheiro do velho. Sabe, até brocha tenho andado, ultimamente, mas a Benê não liga muito. Ela é natureba. E me arrumou uma guru, uma austríaca, esquisita, de olho baixo, que fica tomada e me dá uns passes, impondo as mãos sobre mim, sem me tocar. Dá vontade de fazer cócegas nela. Mas tenho me controlado. Ontem, numa das sessões, senti um sono danado. Abri a boca feito um puto. Benê, de vez em quando, dava uma espiada pela porta entreaberta. A guru lá me obriga a tomar uns chás e põe uns incensos que me lembram um restaurante indiano que frequentei nos anos oitenta.

Não vai adiantar nada disso. Eu vou continuar louco, porque eu preciso me sentir bem, e não consigo. E é aí que o meu comportamento se torna, como dizem, antissocial.

“Benê, acho melhor você desistir de mim, sabe, eu não vou ter jeito. Essa gringa está me assustando com as mandingas dela. Sem contar que ela me mata de sono.”

“Mas eu gosto de você, cara. E só quero te ajudar.”

“Mas não vai, Benê. E eu vou acabar te sacaneando. Não faço outra coisa na vida a não ser sacanear quem gosta de mim.”

Então é assim: eu vou continuar indo atrás de terapia. Alguém que me ajude. Mas não acredito que vá dar certo. Eu às vezes penso que caí neste mundo por engano. Sou um forasteiro por aqui.

Crie um site como este com o WordPress.com
Comece agora