Início

  • Enganamania

    Por Eliana Haberli

    Uma onda gigante de engana-comprador, engana-povo, engana-eleitor, engana-contribuinte, engana-trouxa, engana-ouvinte, engana que eu gosto, se integra nas nossas vidas. Verdadeiro tsunami. Lei tem que ser cumprida por todos? Nem todos são todos. O Exército não quer ajudar as vítimas do Rio Grande do Sul? Seu vizinho vai dizer que acredita nessa e em outras bobagens. Refrigerador pela metade do preço na internet? Parece, mas não é. O José Luiz Datena e a Claudia Raia morreram? Fake tipo engana-internauta. Promoção imperdível? Você só paga metade do dobro. Você vai ter desconto na conta de luz? Ainda vai ser analisado pelo VAR. É você quem decide a hora de se livrar de um serviço que não quer mais pagar? Não, o contrato que você não assinou é válido ainda por 2 anos. Está tranquilo dentro da casa que comprou com o trabalho de uma vida? Não, o município vai desapropriar para construir um túnel. Vai ser indenizado? Não se sabe nem quando nem por quanto.
    Há leis, há acordos, há órgãos para proteger o consumidor, há tribunais, há Ministério Público, há agenda de proteção ambiental, há Acordo de Paris, há Delegacia de Defesa da Mulher, há Defensoria Pública, há uma enormidade de mecanismos de defesas do cidadão. Mas vai procurar, na hora da necessidade. Tudo dependerá da sorte. A permissividade é grande, a ignorância é abismal, as falhas são gritantes, a máquina anda devagar, a Justiça tem a vivacidade do Tio Paulo, aquele que chegou semimorto no banco.
    Estou nesse mau humor por causa de uma audiência pública. Você conhece a história, leitor. Audiências públicas feitas em órgãos públicos para levantar a opinião do público sobre obras ou mudanças ou alterações de interesse geral. Audiências públicas são exigências do bem governar e são feitas desde o tempo de D. Pedro II. Vieram com a Coroa portuguesa. Na verdade, até a Bíblia cita audiências públicas. O rei Salomão por exemplo, era afamado nesse quesito.
    Um certo governo estadual e uma certa agência encarregada de fiscalizar o governo estadual fizeram no mês passado uma audiência pública sobre uma obra que vai afetar algumas centenas de milhares de cidadãos, numa área de 1 milhão de metros quadrados numa certa capital com nome de um certo santo apóstolo. Alargamento de vias, derrubadas de praças e parques, desapropriação de imóveis em bairros residenciais, aterramento de nascentes e algumas outras ameaças. A reunião foi divulgada às escondidas e nela compareceram meia dúzia de gatos pingados de uma área que não tinha nada que ver com a obra.
    Conclusão dos governantes: A questão já foi discutida pelo público. Mãos à obra. Está sendo dada marcha a ré na burocracia de D. Pedro II. Nem naquela época de poderosos senhores e capiaus ignorantes se pensaria nas manobras malandras de hoje.
    É de abalar monge zen. É de sacudir as barbas do rei Salomão.

  • Conotações

    Por Lilian Bruno

    Espera-se isso ou aquilo.
    Espera-se deste ou daquele.
    Espera-se disto ou daquilo.
    Espero de mim.

    Vê-se através dos códigos ocultos oferecidos pela vida a todos, e sabe-se, nem todos os conseguem perceber, que não é possível ser paciencioso o tempo todo, em certos momentos, questões ou situações. Necessário é ter força ativa.

    As circunstâncias pedem por si só, e diga-se , a ação nada tem haver com aceitação de agressividades.

    Em certo momento, num livro precioso com certeza, li que se nossa vontade não for suficiente para concretizar objetivos, busque-se deixar claro para si mesmo, que tudo é efeito da vontade, no melhor, no pior.

    Eu pergunto :
    É bom aquele que finge ser ?
    É mau aquele que enfrenta conjunturas dúbias ?
    É bom aquele que serve ?
    É mau aquele que ferve ?

    Bom e mau.
    Mau e bom.

    Qual a mais acertada implicação ?

    Aquela que a boa vontade consegue chefiar ?

    Nisso, que seja conseguido o bom ponderar para que a ação tenha admissíveis frutos.

    Nesse caso, não há duplas interpretações.
    Observe-se por aí….

  • Caminhar e algo mais

    Por Valdir Sanches

        Da janela do seu quarto, o idoso vê o percurso de sua caminhada. Quinhentos e cinquenta metros que margeiam o lago de Vila Galvão, em Guarulhos. Assim, nos fins de tarde, quando a temperatura ameniza, deixa sua casa e logo está entre os caminhantes, homens e mulheres, uns tantos da assim chamada terceira idade. 

        Então acontece… uma moça faz o circuito de bicicleta. Muito alegre, como se nota; e nem um pouco devagar.  Na terceira vez que vai passar por mim, recuo para o lado. Ela para. Segue-se o diálogo.

       — Por que o senhor fez isso?

       — Porque você já tirou duas finas de mim.

       — Como, fina?

       — Passou muito perto, quase raspando.

       — Ah, não se preocupe. Eu sou boa na bicicleta! Nunca atropelei ninguém.

      — Então, OK.

       — OK? O que quer dizer isso?

       — Quer dizer tudo bem.

      — Que chique!

       E sai com tudo.

       Estou sentado em um banco do percurso, descansando um pouco. Uma jovem mamãe se aproxima com o filhinho de colo e pergunta se pode sentar aqui.

       — Ora, claro!

       Ela senta.

      -– O senhor não se importa mesmo?

       — Mas como me importaria de ficar junto de um bebê tão doce?

       Ela sorri, feliz. E se justifica: o marido foi tratar de um negócio ali perto, e aproveitou para trazê-la.  Assim poderia passear um pouco com o filhinho. E…

    conversa vai, conversa vem, diziam meus avós, falei da minha filha e dos dois filhos, quando eram pequenos, e dos netos (sem dar canseira). Ela se espantava… e falava do bebê. Foi uma conversa sobre fraldas, e mamadeiras, até que adiantei o tempo. Contei que na minha casa uma parede da salinha de café estava liberada para as crianças rabiscarem o que quisessem. E vinham desenhos de árvores, carros e até do nosso cãozinho, em rabiscos imperfeitos.

       A jovem mamãe gostou muito do que ouviu, e disse que o filhinho, chegando a hora, teria sua parede. Com isso pedi licença para deixá-los e reiniciar a caminhada. Ela ficou um pouco decepcionada. Imaginei que quisesse apresentar ao marido esse vovô tão dedicado…

       Mas ele, eu, tinha o dever, que me impus, de caminhar. E fui em frente. Mesmo nessas horas, passo pelos food truck estacionados nas bordas do lago, que oferecem uma variedade de lanches e pratos.  Também pelos vendedores de quinquilharias, e ainda pelo artesão que vende seus brinquedos de madeira.

       Mas o que me impressiona é um artista, um homem de aparência simples. Ele retrata, na ponta do lápis, como se fosse uma foto, o rosto de quem se interessa. Uma obra de arte, que só tinha visto em museus. Não fosse parecer vaidade, teria o meu retrato. Para mostrar a preciosidade da obra, mais do que minha estampa.

       Sigo com a caminhada. Para chegar em casa, tenho que encarar uma subida curta e amena – moro na rua de cima. Uma vez vencida, paro para tomar fôlego. Mais por cuidado. Estava nisso, quando uma moça que ia passando se aproxima e pergunta, preocupada:

       — O senhor está bem?

       — Sim, obrigado.

       E expliquei o que se passava, a subida, tomar um pouco de fôlego. Ela pareceu aliviada. Acrescentei:

       — Você é uma pessoa preciosa, por se preocupar com alguém que nem conhece. 

       Ficou um pouco sem jeito.

      — O senhor é muito gentil.

       E se foi… Parecia feliz.

  • Sobre o voar

    Mariana Portela
    Eu sempre organizava a casa para a chegada do Tom. Comprava leite Ninho, lia a programação infantil do fim de semana, punha mais água nas plantas. O ritual de sua vinda me fazia um homem mais sereno. Deixava de lado as noitadas regadas à gin tônica ou uísque sour. Esquecia-me do computador, dos meus funcionários, de tomar o antidepressivo.
    Às vezes, confesso, ainda me dá medo de como será nosso encontro. Nem sempre estamos em plena sintonia. Por mais que nos esforcemos, os dois, há a estranheza da ausência, o escândalo da demora, a vertigem de me ver, em outros olhos.
    O Tom mora com a mãe, no Recife, desde os dois anos de idade. A cada quinze dias ele vem me visitar em São Paulo. Este fim de semana era especial – feriado prolongado. Tínhamos cinco dias para desbravar dinossauros, visitar planetas pueris, desenhar universos encantados.
    Decidi convidar duas amiguinhas do jardim de infância, no sábado. Sinceramente, não sabia se elas ainda lembrariam dele. Quando se tem dois anos e o cérebro ainda em construção, é impossível discernir qual lembrança escolherá a memória como casa.
    A Beatriz e sua mãe chegaram pontualmente às três horas. O sorriso da pequena era capaz de me salvar de todos os pesadelos que tive, quando criança. A inesgotável felicidade de quem vive os instantes em doses homeopáticas. Sua alegria em ver meu filho, austero, menino, transbordava os quartos e os contos de fadas. Paixão mesmo.
    A outra menina demorou mais de uma hora para se juntar àquela sala de verdades inventadas. Sua mãe, Maíra, uma socialite que não estava acostumada a dirigir o próprio carro, tivera dificuldade em estacionar. Eu moro ao lado do Morumbi e era final do Campeonato Paulista.
    Enquanto a Julia, rebenta da burguesa insossa, não chegava, parecia-me óbvio que Beatriz se esbaldava na exclusividade com o Tom. Envergonhadíssima e alerta. Elegia todos os seus brinquedos preferidos. Enredava desvarios de eternidade. Sorria, tímida, à espera da aprovação da mãe que, estarrecida, buscava alguma cumplicidade no meu olhar.
    A tarde durou menos que um pôr do sol de outono. Quando me deparei com o relógio de mesa, uma relíquia vintage comprada na semana anterior, já passava das oito. Repletas de brigadeiros e poesia, as meninas se despediram do Tom e de mim. Reparei nos sorrisos escondidos na íris de Beatriz. Sua mãe, acanhada, veio me confessar, baixinho:
    – A Bia fala toda hora do Tom. Ele é o primeiro amor da vida dela, mesmo sem vê-lo.
    Atordoado, passei a noite pensando naqueles primeiros afetos. Amores que levamos em formas de nuvens. Amores que se dissipam nos azuis e esquecemos para sempre.
    No dia seguinte, levei o Tom para Guaecá. Achei que nossas horas seriam melhores, longe do caos da Pauliceia. Lá, distraído pelo cheiro de algas e mergulhado nos escritos de Henry Miller, recebi um vídeo da mãe da Bia. Elas haviam estado no Borboletário de São Paulo, naquele momento. Uma borboleta, silenciosa, atreveu-se a pisar no nariz da menina. A mãe, orgulhosa, registrava a doçura com o celular, quando a filha lhe disse:
    – Borboleta, quero que você vá até o Tom, que mora no Recife!
    Uma delicadeza enorme e corroída me suspendeu em quimeras. Como é possível uma criança sentir esse absurdo gratuito que é o amor, nessa idade?
    Mostrei o vídeo, imediatamente, ao meu filho, exausto de oceanos. Ele, menino, mostrou-se profundamente desinteressado:
    – Papai, eu detesto borboletas!
    Senti-me um imbecil. Por ser homem; por entendê-lo; por testemunhar tamanha atrocidade, vinda dele. Meu pequeno paraíso repetia as mesmices que eu tanto abominava. Onde havia escondido sua sensibilidade?
    Passei o domingo inteiro e boa parte da manhã de segunda a explicar ao Tom sua impassibilidade com a amada. Argumentei que nada era relacionado às borboletas. Só existia o desejo de endereçar saudades, algures.
    Não tive a certeza de que ele me entendeu, até o fim do dia. Entramos no mar, ainda morno de sol. Uns quatro peixinhos, gêmeos, invadiram a paisagem. Eram amarelos com detalhes rosados. O Tom, inebriado pela possibilidade de agradecer, tentou encarcerá-los com os dedos, miúdos. Falou, com a liberdade dos deuses:
    – Vou guardar esses peixinhos para a Bia, papai. Quem sabe ela também goste de voar para dentro!
    Embasbacado, eu não consegui pensar em outra coisa: tornei-me pai para regressar ao Nunca.

  • Lamber os beiços

    Por Fernando Portela

    Meti meio pão francês com manteiga na caneca cheia de café; deixei encharcar um pouco, até a manteiga vazar e manchar o líquido escuro, e aí fui puxando com os dentes pequenos nacos do pão, que ora chupava, ora deixava desfazer na boca. Não existe nada mais delicioso neste mundo do que isso.

    Ando gostando muito de comer, fico até preocupado. Não posso me entregar a prazer algum, não vou amolecer, distrair-me. Daqui a pouco o herdeiro vai entrar pela porta principal do restaurante, com os dois seguranças. Tenho certeza de que vai escolher a mesa próxima do toalete, que é a mais protegida, apesar do cheiro de mijo que se espalha por uns três metros quadrados. Mas o herdeiro é gordo e glutão: quando come, não vê nem ouve nada, não sente cheiro de porra nenhuma. Por isso será fácil matá-lo. O problema são os seguranças. O gordo os troca a cada quinze dias.

    Estou na campana há muito tempo, desde o final do ano passado. Sei tudo desse filho da puta obeso. Sei, inclusive, que a sua pior tara é a de só se excitar quando vê sofrimento. Por isso bate tanto nas mulheres. Há certas pessoas que não deveriam vir ao mundo, eu talvez seja até uma delas, mas esse gordo é pior do que eu. Eu, pelo menos, tenho a minha ética e jamais apaguei um pai de família ou alguém reconhecido pela comunidade como um benfeitor. Tive de encarar Brejo Preto, quando ele veio me contratar para queimar o juiz.

    “Sabe quantas crianças estão vivas por causa daquele doutor, Brejo Preto?”, eu perguntei, porque até meu irmão Lourenço tinha mandado dois órfãos para a casa de caridade que o juiz mantinha.

    “Tô cagando.”

    “Tá não, Brejo Preto. O homem cuida de sessenta crianças, levanta dinheiro até do padre Júlio, que é a pessoa mais avara que já conheci. Se esse homem morre, quem vai tocar o orfanato?”

    “Que se foda.”

    Acabou de falar e os miolos foram parar no teto. Dizem que uns pedacinhos pretos estão lá até hoje, grudados. Os três capangas que vieram com ele nem esperaram pra carregar o corpo. Olharam pra mim com cara de bunda e saíram correndo. Não se faz mais capanga como antigamente. Eu mesmo me surpreendi com aquilo. Será que agi de reflexo? Acho que foi. Não suporto ver gente egoísta, porque o mundo é uma massa que só se move quando todos empurram. Quer dizer, um depende do outro e é o povo que dá a direção. Tem que ter gente nesta merda pra cuidar dos abandonados. O juiz mandou três amigos meus pra cadeia, mas é um homem decente.

    Nossa! Agora, cheguei até a lamber a ponta dos dedos e passei a língua nos beiços. Que pão gostoso, caceta! Torradinho, saído do forno inda agora. E a manteiga… daquelas de Minas que só se vende em lata.

    Péra aí: deve ter alguma coisa errada nesta história. Não conheço ninguém no restaurante. Das vezes em que estive aqui por perto, na campana do gordo, jamais entrei neste lugar. Ficava de longe, no máximo perto da porta, fingindo de motorista cansado que precisa esticar as pernas, ou observava de dentro do caminhão. Fiquei meses nisso. Sou um profissional. O sujeito que me atendeu deve ser o dono, anda de roupa comum, enquanto os garçons se vestem com um avental azul. Foi o dono que me serviu o pão e a manteiga de lata. Por quê?

    Daqui a pouco o gordo vai atravessar a porta e eu não deveria me mexer daqui. Mas não gostei da descoberta: quem sou eu, um desconhecido, para merecer o melhor bocado da casa? A menos que…

     Levantei-me com calma, olhando para todos os ângulos do grande salão, até para o que se passava às minhas costas, através do espelho redondo no ângulo da parede, e foi pelo espelho que vi o dono do restaurante empalidecer só pelo fato de eu me ter mexido. Voltei-me para ele, andei em sua direção, com passadas moles, mas olhando-o nos olhos. Ele ficou hipnotizado. Cheguei muito perto e disse, rindo, que queria falar com ele dentro do banheiro. Ele obedeceu, tremendo.

    “Que foi, meu senhor?”

    “Você vai me dizer. Serve manteiga de lata pra todo mundo aqui? E esse pão torradinho, de onde veio?”

     “Meu senhor, eu sei quem o senhor é. Queria só agradar…”

    “Você e mais quem?”

    “Só eu, meu senhor. Não converso essas coisas com empregado.”

    “Tire a roupa.”

    “Mas, meu senhor…”

    “Vamos trocar de personalidade. Temos o mesmo tamanho. Sente no lugar onde eu estava, com a minha roupa. Eu vou servir manteiguinha mineira pra você.”

    “Os garçons vão notar.”

    “Se notarem, vão entender que é melhor ficar quietos. Ou vão todos pro céu. Tenho bala aqui pra matar mais de cinqüenta.”

    Na hora em que saíamos do banheiro, o gordo chegava com os dois seguranças que, pelo menos, eram os mesmos da última vez que vi o desgraçado.

    O dono do bar sentou-se no lugar onde eu estava e começou a brincar com a lata de azeite de soja em cima da mesa. Eu peguei a primeira bandeja que achei e, diante dos olhares assustados da mocinha da caixa, que não conseguiu compreender minha súbita presença com as roupas do patrão, peguei o pão e os potinhos de manteiga. Esta, com certeza, de quinta categoria. A bandeja encobria a pistola.

    Fui pelas costas dos seguranças levar o couvert. Era uma excelente posição. O gordo na minha frente. Os seguranças de costas. A mulher do pai daquele puto, a segunda, me contratara para matar o enteado. O velho não viveria muito, com cirrose avançada, e não havia mais herdeiros, além do gordo.

    “Mas a senhora tem direito à metade”, eu disse à mulher, que não me parecia má pessoa.

    “Não é dinheiro, senhor. É medo. Ele está se preparando para me matar. Sinto no olhar dele.”

    “Aí a senhora se antecipa…”

    “Isso.”

    “Vou aceitar o serviço porque aquele gordo não vale o que o gato cobre. Quase matou de pancada uma amiga minha.”

    “Meu Deus! Por quê?”

    “Só para vê-la sofrendo. Sentindo dor.”

    Lembrei-me do diálogo no momento em que me aproximei da mesa do herdeiro. Os seguranças viram que era o homem do restaurante vindo e me deram as costas. O gordo já estava de cabeça baixa, arrasando um saco de batatas fritas.

    Acertei à queima- roupa a cabeça de cada um. Eles caíram de um jeito que parecia de brincadeira: como quem dança capoeira, chutando as mesas e cadeiras de plástico. O gordo ainda levantou a cabeça, mas o corpo dele não se mexeu. Aí foi fácil: mais um tiro no meio dos olhos. Meu silenciador é tão eficiente que uma parte do pessoal, dentro do restaurante, não percebeu o que estava acontecendo.

    O herdeiro caiu de costas, junto com a cadeira, e não largou o saco de batatas fritas. Eu passei por cima dele, carregando a bandeja, quando as pessoas começaram a gritar e a correr para longe do prédio, e me dirigi diretamente ao dono do bar, que usava minhas roupas.

    “Obrigado, meu caro, pela manteiga de Minas e o pão torradinho. Sabe, eu lambi os beiços.”

    O homem sorriu, cúmplice, enquanto as pessoas gritavam cada vez mais alto.

    “Quando quiser essas coisas, venha comer aqui”, ele disse. “Lugar onde ninguém vê nada é o melhor do mundo.”

    “Pode deixar que eu volto, amigão.”

    Meu plano de fuga já estava pronto há muito tempo. Saí pela lateral, fui até o pequeno depósito de pneus e outras velharias, num puxado do restaurante, onde também guardavam caixas de cerveja; peguei a bicicleta e saí tranqüilamente, como um capiau qualquer, sem pressa pra chegar em casa. Ainda ouvi umas sirenas de polícia, ou de ambulância, nunca sei ao certo, enquanto me aproximava da servidão onde guardei o carro. Com o lucro do serviço, poderia ficar três meses pescando no meu sítio em Goiás. Um dia ainda iria convidar o amigo lá do restaurante. Ele certamente não conhece a emoção de pegar um pacu e comer na hora, na brasa. Hum…

  • Paulistano da gema

    Por Eliana Haberli

    O homem se chamava Adélcio e veio ereto do Rio Grande do Norte. Pobre, disfarçando amarguras, calado, mas daquele tipo durão que enfrenta o destino sem se lamentar. Foi parar na periferia da Zona Leste, lugar feio, sem asfalto, na casa pequena do irmão da tia. Logo que pós os pés lá, sabia que tinha de dar o fora em pouco tempo.

    Arranjou trabalho duro na construção, duas horas de trem cheio e ônibus lotado. Frio úmido dentro das roupas no trabalho de levantar parede. Olhava com calma e fazia tudo o melhor que podia. O alinhamento dos blocos, ajustadinhos, lhe dava uma sensação boa. “Se tem que fazer, é pra fazer direito”, pensava. E se admirava, mais do pensamento que vinha na cabeça do que do resultado do trabalho. Alguns colegas brincavam, faziam troça. Adélcio apena ria de lado. Carecia falar nada não.
    E aí aconteceu coisa ótima. Avistou um sorriso iluminado de moça, dentro do ônibus, que àquela hora já estava mais vazio, perto do ponto final. Permitiu-se um olhar mais apurado. Era Natalina, filha de sergipana, moradora de vila próxima à casa do irmão da tia. Desceram juntos, trocaram palavras. No dia seguinte, a mesma coisa, no mesmo horário.

    Foi com Natalina que Adélcio arrumou motivo para sair do improviso da casa do irmão da tia, arrumar um quarto-e-cozinha até que aceitável, e, com a grande vantagem de estar só a quadras a pé do ponto de ônibus. Olhou as paredes sem tinta, a lâmpada pendurada do teto, a porta quebrada do banheiro e sorriu. Em pouco tempo o novo casal se instalou lá.

    As coisas evoluíram rápido. Porta do banheiro consertada, fios da luz arrumados com decência, trabalho dele, trabalho dela. “Se tem que fazer, é pra fazer direito.” Um dia, na construção, ele se tornou encarregado. Blocos, canos, ferros, todos os materiais pareciam velhos conhecidos. Com gente, às vezes se leva susto, com tijolo bem assentado, de jeito nenhum. Natalina já exibia uma barriga grande. E a idéia corajosa veio dela. “Homem, você gosta tanto de material, podia montar um comércio.” Adélcio se assustou. Ele, dono de comércio? “Ora, homem” despachou Natalina, em vez de vender pinga, como o Tonho da esquina, podia vender coisa honesta.” Responder para Natalina, Adélcio já tinha aprendido, era coisa difícil. E a mulher, além do mais, já tinha até visto uma garagem para alugar perto do instituto de beleza onde era manicure. “Será?”pensou Adélcio, juntando uma porção de tijolos na sua cabeça. Pois foi.

    Dinheiro para mercadoria? Eles se arranjaram, economias dele e dela, tão pouquinhas, mas deu para comprar coisas de promoção no próprio supermercado. Natalina, que mulher atrevida, arrumou um cartão de banco. Com crédito! Adélcio perdeu noites de sono para achar o preço certo de vender os canos. Precisava do valor certinho que desse para pagar o crédito e atrair o freguês.”Se tem que fazer, é pra fazer direito”. Chegou a um meio termo, e tocou o negócio, às vezes até vendia no mesmo preço que pagaria depois, mas viu que a coisa se ajeitava. Nasceu Afrânio, bebê calminho. E logo depois veio Caetano, bebê chorão.

    Trabalho grande de atender a freguesia. Trabalhava no sábado também e até no domingo pela manhã. Ouvia com calma as conversas, olhava no olho do comprador e, claro, só emitia poucas palavras. Tudo caminhou com a ajuda do Alto. Houve temporadas difíceis, houve alta inesperada de preços, houve um ou outro mau pagador. Adélcio não se queixava e o comércio cresceu, foi necessário mudar para um ponto maior.

    Adelcio e Natalina comparam terreno em rua alta, construíram uma casa dando de cara para o sol nascente. Trabalho duro para construir nos fins de semana, quem ajudou foi o baiano Eugênio, amigo de conversa boa nas horas vagas. Eugênio falava e Adélcio calava.

    Veio a mudança do comércio para lugar grande, perto da avenida. O tempo correu, Adélcio com pouca conversa e muita observação por dentro. Já tinha fornecedor de marca boa. Um deles, cheio de lábia, falou que “era um prazer servir empresários tradicionais” como ele. Empresário tradicional, o que velho pai diria lá no Norte?

    Os meninos cresceram rápido, os negócios vingaram e quatro empregados foram contratados. Caetano virou o braço direito do pai. Menino atrevido como a mãe, fez curso, fazia conta de cabeça, arranjou contador moderno, tinha receitas e despesas bem controladas. Caetano palpitava, as coisas estavam bem, pai e mãe podiam trocar a televisão, podiam comprar carro novo. Adélcio ouvia, mas quando franzia os lábios e olhava de lado, a conversa terminava.

    Caetano inventou de ampliar a loja, com um segundo andar em jirau, encheu o lugar de caixas d’água azuis e janelas de alumínio, sabia organizar mercadoria. Como aquele bebê chorão, difícil de largar a chupeta, foi se tornar um homem desses, Adélcio pensava. Com o filho no comando, ele se dedicou à ampliação do pátio do fundo. Paredes impermeabilizadas, lugar certo para saída e entrada de mercadoria, faixas pintadas no chão, uma beleza. “Se é pra fazer…”

    Automóvel no seu nome, caminhonete no nome da empresa, Adélcio se orgulhava. Mas sem demonstrar, que nessas coisas, como em tudo, a pessoa tem que ser discreta. Conversava um pouco com Eugênio. “Você teve sorte com Caetano” dizia o amigo. “Agora é aproveitar a velhice.”

    Uma ideia antiga, bem no fundo da cachola de Adélcio, foi crescendo. Comprar área na zona rural da sua pequena cidade do Norte. Lembrava do gosto do leite de cabra e do maxixe, que só mãe fazia daquele jeito. Sonhava . Foi montando o plano, naturalmente sem falar muito.

    A mulher acabou concordando e lá foram os dois para o Rio Grande do Norte. A terra com casinha já estava apalavrada. Levaram as malas e o silêncio pensativo. Até Natalina mal abria a boca. Viagem de avião. Desta vez Adélcio desistiu de discutir com o filho (apoiado pela mulher), mesmo achando que de ônibus eles se ajeitariam bem.

    Ficou Caetano, com os empregados, os afazeres e os novos planos. Cartão de fidelidade para os clientes. Promoções de produtos enviadas por email.

    Telefonema da mãe. “Tudo bem, mãe?” “Claro, precisa ver que bonitinha a cabra, empurrando a porta da cozinha hoje de manhã.” Caetano sorriu, sentiu certa inquietação. Pai não veio ao telefone.

    Daí a poucos dias, Caetano levantou os olhos do computador. Pai e mãe na porta da loja.

    “Vocês aqui, o que aconteceu?”

    Mãe abriu a boca e não disse nada. Foi pai que falou com tom decidido.

    “Não gostei da água. A água é salobra. Resolvi voltar, aqui é melhor.”

    Aconteceu que Adélcio percebeu, ao sentir o gosto da água lá no Rio Grande do Norte, que tinha virado paulistano. Ficou estupefato. “Ora essa…” Tentou se explicar para Natalina. Saiu um quase discurso. “Era bonito lá, alegrava muito o seu coração, gostava do pessoal mas…” A mulher entendeu e, desta vez, ela também se assustou consigo mesma. Ela concordava. Voltaram.

    “Caetano, gente de São Paulo, não se acostuma fácil por aí”, disse Adélcio ao filho boquiaberto. Caetano não achou como retrucar. Além do mais, sabia que não ia obter mais explicação nenhuma.

  • O Rei e minha mãe.

    Por Lilian Bruno

    Nesta ocasião de 19 de abril de 2024, consigo sentir a frustração dos fãs com ingressos já comprados, por ficarem impedidos de assistir ao show do Rei Roberto Carlos, cantor mui amado pelos súditos. Numa festa de aniversário !
    Desejos não realizados á parte, segurança pública é prioritária, sem contestação.
    Vemos repetir fatos bastante comuns cá entre nós brasileiros. Avisar ao público da suspensão da apresentação pouco tempo antes do início da apresentação é demais, deixo registrado.
    Como fã tenho história para contar.
    Minha mãezinha Nahir, queridíssima, já não aqui conosco na forma física, com cem anos de idade, embalava seus dias ouvindo músicas de Roberto Carlos.
    Sentada confortavelmente na sala, na poltrona que era só sua, ouvia e cantava (ás vezes), letras que foi decorando de tanto escutar.
    Eu de quando em quando, animada , com vistas em alegrar seus momentos “tirava-a para dançar “. Mamãe sempre aceitava. Que bom foi isso !
    Desse modo, várias horas de variados dias foram preenchidos pelos sons e letras musicais que mães, pais, filhos e netos apreciam.
    Como é grande o meu amor por você, mãezinha.
    Dentro dessa história tem a história da rosa, mimo que expectadoras querem levar prá casa após assistir o cultivador de lembranças, que é o Rei em suas apresentações. Os variados sentimentos contidos nessas músicas elevam, entristecem, reanimam num tempo só.
    Voltando á rosa, no único show de Roberto que fui, patrocinada pela irmã Lenita Helena, movida eu pelo estado emocional de término de show, mas ressaltada seja a vontade de proporcionar á mamãe nova satisfação vinda do cantor preferido, resolvi que iria disputa-lá.
    Chegada a hora da entrega das flores feita por Roberto no final do show, lá fui eu, determinadíssima. Assim falo, já que ao olhar de baixo para cima, vê-se Roberto Carlos, a rosa e muitas, muitas outras mãos.
    Em algum momento depois de tanto pular para o alcance, eu só via a rosa.
    Mesmo com o rápido passar do tempo, pensei, elas vão acabar. Acho, foi aí que, pronto, peguei uma.
    Não vou dizer, não acreditei. Acreditei sim. Estava ela na minha mão, bem palpável. Um trunfo, uma vitória, uma rosa.Ainda bem que nenhuma
    vez passou pelos meus pensamentos sair dali sem ela.
    Afinal, era para minha mãe !!!
    No entanto, digo com verdade, fiquei bastante realizada em conseguir concretizar a que me desafiei fazer .

  • O nomedo alvo

    (Do baú de textos)

    Por Valdir Sanches

    Os tiros atingiram a…
    Levou dois tiros na…
    — Carlinhos, me dê uma ajuda aqui. Esse sujeito, do crime do Brás. Levou os tiros onde? Como vou escrever isso?
    — Fácil, dois tiros na…
    O editor da página policial pensou um pouco:
    — Não tem jeito, dois tiros na nádega.
    Nádega? – reagiu o repórter. – Parece dado anatomopatológico. Coisa de Instituto Médico Legal.
    Bem, vai ser o quê? – o editor começa a se irritar. – Bumbum? O assaltante José Santinho, vulgo Zézinho Pé Sujo, perseguido pela polícia depois de roubar uma bermuda de um varal, levou dois tiros no bumbum. Tem graça!
    — No traseiro. Dois tiros no traseiro – animou-se o repórter.
    — Impreciso. Traseiro não define o que se quer dizer. Nádega pode ser ruim, mas é específico.
    Desta vez foi o repórter quem se irritou.
    — Não serve porque é traseiro de pobre. Se fosse de rico, valia até com sotaque. Mônaco, urgente: a princesa Stephanie escorregou e caiu de derrière no chão. A France Press usa, por que não podemos usar?
    — Você não ia querer que a princesa caísse de bunda no chão, não é?
    — Taí. Perseguido pela polícia, Zezinho Pé Sujo levou dois tiros na bunda.
    O editor da página policial achou graça.
    — Vamos fazer o seguinte. Você deixa assim. O problema vai ser do copy que fechar a matéria. Como está não pode sair. Vamos ver como ele se vira para consertar.
    No dia seguinte, lia-se, sob o título Assaltante baleado. “Depois de uma tentativa de roubo, José Santinho, o Zézinho Pé Sujo, foi baleado por policiais com dois tiros na região glútea”.
    Meia hora depois, o copy deixava a redação, despedido.
    — Falta de consideração! Me deram um pé no posterior.
    Era mesmo um rapaz complicado.

  • Sem testemunhas

    Por Mariana Portela

    “A mais vil de todas as necessidades – a da confidência, a da confissão. É a necessidade da alma de ser exterior. Confessa, sim; mas confessa o que não sentes. Livra a tua alma, sim, do peso dos teus segredos, dizendo-os; mas ainda bem que os segredos que digas, nunca os tenhas tido. Mente a ti próprio antes de dizeres essa verdade. Exprimir é sempre errar. Sê consciente: exprimir seja, para ti, mentir.”

    Fernando Pessoa, in ‘Livro do Desassossego’

    É longe do palco que se pode ensaiar os contornos do amanhã. Quando se apaziguam as esperanças de futuro e os sonhos perdem sua obrigação incongruente de solidez. Quando os olhos se fecham e aceito a vulnerabilidade de acordar para dentro. Ausente de observadores encontro-me viva, e só. Sem a mórbida obviedade do sofrer.

    Ah, negra hora do dia: agradeço o meu anonimato. Quando a humanidade já foi deitar e o mundo permanece alheio às vicissitudes inúteis dos despertos. Sinto-me cúmplice dos suspiros das árvores, das proibições conjugais: átomos antigos, entorpecentes cósmicos.

    Sinto-me, pois, neste instante, ainda em posse de uma história sem veracidade. Distante daqueles que lembram como sou, como fui e, inevitavelmente, como envelhecerei. Caminho pelos labirintos desfocados que me conduzem a essas letras. Guardei minhas palavras por algumas madrugadas. Não aceitaria que elas nascessem prematuras.

    Nas profundezas marinhas da noite, as cicatrizes se escondem para dar lugar à bela totalidade arredondada. E os oceanos, mais misteriosos e demiúrgicos do que nunca, enaltecem suas melódicas queixas de escravidão ao luar.

    Como gostaria de despir-me, também eu, para o grande silêncio. Sem testemunhas. Pacificada pela sensação de abrigar exclusivamente um pseudônimo confuso, expatriado das mãos rancorosas de seu autor senil. Transportar-me a um mundo de domingos, onde os habitantes emudecem pelo horror ao recomeço; e se aninham, distraídos, na nulidade de suas existências.

    Estou tão cansada, hora gatuna, violenta. Medíocre que sou, refugiada nesse asilo temeroso. Como anseio libertar essas histórias acorrentadas nos presságios ilusórios dos grandes desertos. Anônima. Sem ter os olhos pequenos demais para apreciar os destinos. Desanuviada.

    Quero pecar sem assinatura.

    Viver sem testemunhas seria, hoje, meu desejo mais arcaico. Jorrar minhas memórias por páginas desconhecidas e inacabadas. Iridescente, breve, hermética. Frases sem sentido para que ninguém mais não me morasse.

     Como se torna persecutório o ato de desenhar-se em dizeres, em traduzir-se conteúdo. Medo de ser retaliada por aquilo que foi vivido, embaraço frente aos relatos vergonhosos das melancolias juvenis. O pavor de estar em primeira pessoa. Saudade – essa qualidade da ausência – como faz sentido estar mais próxima da estranheza que suportar a inocente familiaridade. Apenas o estrangeiro de si, de pátria ou de línguas, aguenta, sem anódinos, o peso inesclarecível das funduras.

    Destarte, reintegro a secura intrínseca da esterilidade. Se não posso suportar meus segredos, se os enclausuro na travessia entre o esquecimento e a confissão, perco a maestria uterina. A clarividência sempre toca o julgamento preciso de quem lê.

  • O homem vermelho em seu cavalo branco

    Por Fernando Portela

    O homem vermelho em seu cavalo branco atravessava todo o bairro, duas vezes por dia, de manhã cedinho e no fim da tarde, oferecendo um delicioso produto: leite.

    O homem vermelho era vermelho mesmo, parecia que havia saído de uma manhã na praia; diziam que aquela cor da tez se devia a ancestrais holandeses.

    Para não fazer pipocar a pele frágil, o homem vermelho vestia um chapelão de abas largas, marrom-claro, até às cinco da tarde. Como usava sempre a mesma roupa, cáqui, calça e camisa da mesma cor, e botinas pretas de soldado, o homem vermelho mais parecia um dèjá-vu: todas as vezes que o víamos, imaginávamos um outro momento da vida, em um outro tempo, há três, quatro anos, porque ele era sempre igual. Isso causava uma certa aflição nas pessoas.

    O cavalo branco não era um puro-sangue, longe disso, mas um belo pangaré, imenso, de crinas fartas, alvo como um fantasma, que puxava com vigor a carroça com os galões de leite e o homem vermelho em cima, guiando o veículo com maestria, batendo de porta em porta.

    “Leite puro, do peito da vaca!”, gritava o homem vermelho.

    Às vezes, faziam fila, com seus litros nas mãos, esperando o líquido branco, quase pastoso de tão gordo, e que desprendia um odor nostálgico de curral.

    O homem vermelho sorria para todo mundo, das crianças aos mais idosos, dos débeis mentais aos cegos. Certa vez, meu primo Antenor, que me acompanhava na fila do leite, estranhou muito uma determinada cena.

    “Olha lá”, cutucou-me o meu primo, “o homem vermelho está sorrindo o tempo todo para o cego…”

    “E por que ele não iria sorrir, Antenor?”

    “Ué… porque não adianta.”

    Um dia soubemos que o homem vermelho se candidatara a vereador pelo partido da situação. Ficamos satisfeitos: era uma pessoa que conhecia os problemas do bairro, rua a rua, que ouvia as queixas das pessoas e que, com certeza, possuía uma boa experiência em administração, já que vivia há anos da sua pequena criação de vacas leiteiras em plena cidade e da distribuição do produto. Aquela roupa sempre igual dava a ideia de um homem muito limpo. Mais: era sem dúvida um incansável trabalhador, mourejando de sol a sol – ordenha vaca, enche os tonéis, dá ração, toma banho, sela o cavalo, vende, compra ração, lava os tonéis, recolhe o esterco pra vender…

    O homem vermelho foi cumprimentado por todos os moradores do bairro, recebeu centenas de promessas de apoio, e a cada dia se tornava mais risonho, mais confiante.

    Veio o pleito e, após a contagem, o homem vermelho descobriu que recebera um voto. Não quis acreditar, pediu recontagem, as pessoas estavam ansiosas (“Como é? Quantos votos?”), até que um dia o homem vermelho chegou em casa com os olhos também vermelhos. Chamou Tina, sua mulher, e disse a Seramir, rapaz de quase 30 anos, filho único, muito desconfiado por causa do choro inédito do pai, que depois o chamaria também.

    A portas fechadas, o homem vermelho olhou com firmeza para a mulher e declarou que preferia morrer a se sentir traído, após quarenta anos de casamento.

    “Eu, trair você? Mas quem iria olhar pra mim, homem de Deus? Estou tão gorda e sem graça…”

    “Eu me refiro à eleição.”

    “Que aconteceu?”

    “Tive um voto: o meu.”

    “O quê? Foi seu nada! Foi o meu. Você deve ter errado o voto. Porque eu votei em você. Eu tenho mais estudo, não erro.”

    O homem vermelho não disse mais uma palavra e foi cobrar do filho.

    “Pai, eu não votei porque o senhor não iria aguentar a vida de político… Iria ficar longe da gente. Depois iria se envergonhar do curral…” (Mais tarde, o homem vermelho soube que o rapaz tomara um pileque na véspera da eleição e que acordara após as cinco da tarde, quando já se encerrara o pleito.)

    O homem vermelho voltou à sua vida de sempre, vendendo o leite, só que não era mais o mesmo. Na roupa, antes sempre limpa e impecável, perceberam que algumas sujeirinhas apareciam com frequência. O cavalo branco deixou de ser escovado e ter as crinas penteadas. Um dia o viram mancando, até, com a ferradura mal-ajustada. E o leite passou a apresentar uns pontinhos escuros muito suspeitos. “Coliformes fecais”, insistiam as más línguas.

    Muita gente se perguntou o que havia acontecido, eu inclusive, e acabamos chegando à conclusão de que o homem vermelho não era tão popular assim; pelo contrário: aquela sensação de dèjá-vu que ele sempre passava o associava a fatos desagradáveis e constrangedores, como se ele tivesse o dom da onisciência e estivesse presente a todos os momentos das nossas vidas.

    Mas a explicação fundamental era bem mais simples: ninguém sabia o nome do homem vermelho, e nem se preocupara em perguntar até o dia da eleição. Muita gente chegou em frente à urna, pronta para votar nele, e acabou descobrindo que só o conhecia como “o homem vermelho”.

    Eu cheguei a me oferecer para dar-lhe essas explicações todas, mas quando fui procurá-lo senti um certo bafo de cachaça. Hum, era uma coisa que ninguém notara antes. A depressão é o mal do século, pensei. Acabei desconversando. Uma pessoa alcoolizada não iria captar ponderações mais ou menos sofisticadas, apesar de reais, sobre o maior fracasso da sua vida.

    No caminho de volta, lembrei-me de que, mais uma vez, não lhe perguntara o nome.

Crie um site como este com o WordPress.com
Comece agora