Paulistano da gema

Por Eliana Haberli

O homem se chamava Adélcio e veio ereto do Rio Grande do Norte. Pobre, disfarçando amarguras, calado, mas daquele tipo durão que enfrenta o destino sem se lamentar. Foi parar na periferia da Zona Leste, lugar feio, sem asfalto, na casa pequena do irmão da tia. Logo que pós os pés lá, sabia que tinha de dar o fora em pouco tempo.

Arranjou trabalho duro na construção, duas horas de trem cheio e ônibus lotado. Frio úmido dentro das roupas no trabalho de levantar parede. Olhava com calma e fazia tudo o melhor que podia. O alinhamento dos blocos, ajustadinhos, lhe dava uma sensação boa. “Se tem que fazer, é pra fazer direito”, pensava. E se admirava, mais do pensamento que vinha na cabeça do que do resultado do trabalho. Alguns colegas brincavam, faziam troça. Adélcio apena ria de lado. Carecia falar nada não.
E aí aconteceu coisa ótima. Avistou um sorriso iluminado de moça, dentro do ônibus, que àquela hora já estava mais vazio, perto do ponto final. Permitiu-se um olhar mais apurado. Era Natalina, filha de sergipana, moradora de vila próxima à casa do irmão da tia. Desceram juntos, trocaram palavras. No dia seguinte, a mesma coisa, no mesmo horário.

Foi com Natalina que Adélcio arrumou motivo para sair do improviso da casa do irmão da tia, arrumar um quarto-e-cozinha até que aceitável, e, com a grande vantagem de estar só a quadras a pé do ponto de ônibus. Olhou as paredes sem tinta, a lâmpada pendurada do teto, a porta quebrada do banheiro e sorriu. Em pouco tempo o novo casal se instalou lá.

As coisas evoluíram rápido. Porta do banheiro consertada, fios da luz arrumados com decência, trabalho dele, trabalho dela. “Se tem que fazer, é pra fazer direito.” Um dia, na construção, ele se tornou encarregado. Blocos, canos, ferros, todos os materiais pareciam velhos conhecidos. Com gente, às vezes se leva susto, com tijolo bem assentado, de jeito nenhum. Natalina já exibia uma barriga grande. E a idéia corajosa veio dela. “Homem, você gosta tanto de material, podia montar um comércio.” Adélcio se assustou. Ele, dono de comércio? “Ora, homem” despachou Natalina, em vez de vender pinga, como o Tonho da esquina, podia vender coisa honesta.” Responder para Natalina, Adélcio já tinha aprendido, era coisa difícil. E a mulher, além do mais, já tinha até visto uma garagem para alugar perto do instituto de beleza onde era manicure. “Será?”pensou Adélcio, juntando uma porção de tijolos na sua cabeça. Pois foi.

Dinheiro para mercadoria? Eles se arranjaram, economias dele e dela, tão pouquinhas, mas deu para comprar coisas de promoção no próprio supermercado. Natalina, que mulher atrevida, arrumou um cartão de banco. Com crédito! Adélcio perdeu noites de sono para achar o preço certo de vender os canos. Precisava do valor certinho que desse para pagar o crédito e atrair o freguês.”Se tem que fazer, é pra fazer direito”. Chegou a um meio termo, e tocou o negócio, às vezes até vendia no mesmo preço que pagaria depois, mas viu que a coisa se ajeitava. Nasceu Afrânio, bebê calminho. E logo depois veio Caetano, bebê chorão.

Trabalho grande de atender a freguesia. Trabalhava no sábado também e até no domingo pela manhã. Ouvia com calma as conversas, olhava no olho do comprador e, claro, só emitia poucas palavras. Tudo caminhou com a ajuda do Alto. Houve temporadas difíceis, houve alta inesperada de preços, houve um ou outro mau pagador. Adélcio não se queixava e o comércio cresceu, foi necessário mudar para um ponto maior.

Adelcio e Natalina comparam terreno em rua alta, construíram uma casa dando de cara para o sol nascente. Trabalho duro para construir nos fins de semana, quem ajudou foi o baiano Eugênio, amigo de conversa boa nas horas vagas. Eugênio falava e Adélcio calava.

Veio a mudança do comércio para lugar grande, perto da avenida. O tempo correu, Adélcio com pouca conversa e muita observação por dentro. Já tinha fornecedor de marca boa. Um deles, cheio de lábia, falou que “era um prazer servir empresários tradicionais” como ele. Empresário tradicional, o que velho pai diria lá no Norte?

Os meninos cresceram rápido, os negócios vingaram e quatro empregados foram contratados. Caetano virou o braço direito do pai. Menino atrevido como a mãe, fez curso, fazia conta de cabeça, arranjou contador moderno, tinha receitas e despesas bem controladas. Caetano palpitava, as coisas estavam bem, pai e mãe podiam trocar a televisão, podiam comprar carro novo. Adélcio ouvia, mas quando franzia os lábios e olhava de lado, a conversa terminava.

Caetano inventou de ampliar a loja, com um segundo andar em jirau, encheu o lugar de caixas d’água azuis e janelas de alumínio, sabia organizar mercadoria. Como aquele bebê chorão, difícil de largar a chupeta, foi se tornar um homem desses, Adélcio pensava. Com o filho no comando, ele se dedicou à ampliação do pátio do fundo. Paredes impermeabilizadas, lugar certo para saída e entrada de mercadoria, faixas pintadas no chão, uma beleza. “Se é pra fazer…”

Automóvel no seu nome, caminhonete no nome da empresa, Adélcio se orgulhava. Mas sem demonstrar, que nessas coisas, como em tudo, a pessoa tem que ser discreta. Conversava um pouco com Eugênio. “Você teve sorte com Caetano” dizia o amigo. “Agora é aproveitar a velhice.”

Uma ideia antiga, bem no fundo da cachola de Adélcio, foi crescendo. Comprar área na zona rural da sua pequena cidade do Norte. Lembrava do gosto do leite de cabra e do maxixe, que só mãe fazia daquele jeito. Sonhava . Foi montando o plano, naturalmente sem falar muito.

A mulher acabou concordando e lá foram os dois para o Rio Grande do Norte. A terra com casinha já estava apalavrada. Levaram as malas e o silêncio pensativo. Até Natalina mal abria a boca. Viagem de avião. Desta vez Adélcio desistiu de discutir com o filho (apoiado pela mulher), mesmo achando que de ônibus eles se ajeitariam bem.

Ficou Caetano, com os empregados, os afazeres e os novos planos. Cartão de fidelidade para os clientes. Promoções de produtos enviadas por email.

Telefonema da mãe. “Tudo bem, mãe?” “Claro, precisa ver que bonitinha a cabra, empurrando a porta da cozinha hoje de manhã.” Caetano sorriu, sentiu certa inquietação. Pai não veio ao telefone.

Daí a poucos dias, Caetano levantou os olhos do computador. Pai e mãe na porta da loja.

“Vocês aqui, o que aconteceu?”

Mãe abriu a boca e não disse nada. Foi pai que falou com tom decidido.

“Não gostei da água. A água é salobra. Resolvi voltar, aqui é melhor.”

Aconteceu que Adélcio percebeu, ao sentir o gosto da água lá no Rio Grande do Norte, que tinha virado paulistano. Ficou estupefato. “Ora essa…” Tentou se explicar para Natalina. Saiu um quase discurso. “Era bonito lá, alegrava muito o seu coração, gostava do pessoal mas…” A mulher entendeu e, desta vez, ela também se assustou consigo mesma. Ela concordava. Voltaram.

“Caetano, gente de São Paulo, não se acostuma fácil por aí”, disse Adélcio ao filho boquiaberto. Caetano não achou como retrucar. Além do mais, sabia que não ia obter mais explicação nenhuma.

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